Rannie Cole: mais um conto: ‘O Acidente’
Conto: ”O Acidente
– Tu viu a cara do moleque? – ela perguntou
– ká-ká-ká-ka… vi sim, a gurizada de hoje não tem noção.
– É, seu idiota! Você deixou ele dar em cima de mim e não fez nada – disse Jana fazendo beicinho e fingindo indignação.
– E o que é que tu queria que eu fizesse? Ele tava tentando faturar a dele, tadinho… rs
– Você poderia ter chegado e se imposto, sei lá. Mostrado para ele que eu tava acompanhada…
– Ah, Sinto muito, mas eu queria tanto ver a tua reação, kkk… dei umas boas gargalhadas com o papo sonso de vocês
– Tu tava ouvindo? Seu cafajeste!
– Tava sim, passa o baseado pra cá, deixa eu dar uma tragada…
Essa foi a última conversa dos dois. Estava uma noite escura, e parecia haver faltado energia, pois a rodovia por todo o percurso da serra não estava iluminada, e para piorar a situação a neblina tornava o caminho praticamente invisível.
Pouco depois de ter pego o baseado da mão de Jana, Rafael viu algo que parecia ser um clarão vindo da direção contrária, ele desviou e bateu no guard-rail, que cedeu, e o carro rolou serra abaixo.
Ao acordar, uma forte dor de cabeça lhe nublava o raciocínio. O air-bag havia salvo sua vida. Chovia forte. E ele não conseguia ver nada fora do veículo… Olhou para o lado: Jana estava imóvel. Saia sangue de sua boca. Ele a sacudiu, mas era inútil. Ela estava fria. Tentou se mover: sua perna estava presa. E, de repente, toda a cena lhe veio a cabeça e ele começou a chorar. Jana estava morta! Ele queria morrer. Por que não havia morrido?
Os raios, seguidos de trovões se sucediam. Tirando por seus flashes, a escuridão era total. A chuva engrossara. Sua perna doía. Sua cabeça doía. Ele era um imbecil. Por que foi beber? Por que havia ido naquela festa idiota?
– Fique calmo – ele ouviu a voz de Jana dizer. Por um instante esqueceu que ela estava morta. E tocou em seu rosto empapando sua mão no sangue já frio que se espalhava. Aquilo o fez tremer, intensificando seu choro e o desejo de morte. Por fim, ele adormeceu.
O sol da manhã o fez despertar. Ficou horrorizado quando percebeu que era real. O carro estava de cabeça para baixo, com toda parte da frente esmagada em uma árvore. Do seu lado estava Jana, imóvel, pálida, banhada em seu próprio sangue. Sua perna estava dormente, presa nas ferragens. Ele queria sair, mas era impossível. Começou a gritar por socorro, porém, em poucos minutos parou. Estava fraco, além disso não estava na estrada. Para qualquer lado que olhasse, ele só conseguia ver o mato.
– Putz o que é que a gente vai fazer – disse Jana olhando para ele toda ensanguentada
– Jana? Você está viva?
– Não! É o meu fantasma o coió! É claro que estou viva! Mas falando sério, você consegue se mexer?
– Eu estou com a perna presa. E ela está dormente.
– O celular tá funcionando?
– O meu está sem bateria, e o seu?
– Putz o meu quebrou!
– Bem, eu consigo sair, vou atrás de ajuda… me espera aqui.
– Como se eu pudesse sair…
O tempo ia passando e ele ia ficando fraco e tonto. Estava feliz por Jana estar viva. Por um momento acreditara que ela tinha morrido. Seria o inferno se isso tivesse acontecido mesmo… A tarde começava a despontar no céu quando Rafael adormeceu…
Acordou, quando o crepúsculo começava a cair, com um homem do campo tendo jogado um pouco de água em seu rosto:
– Tudo bem moço?
– Não sinto a minha perna. Está presa entre as ferragens. Dá pra chamar uma ambulância?
– Ich, com a chuva que deu ontem, e a estrada como tá, ela vai levar mais de dia pra chegar!
– Então me ajuda a sair daqui…
– Você tem sorte mesmo hein? Se eu não tivesse sentido um impulso de dar uma volta para esses lados você podia ficar mais de semana ai preso, nunca passa ninguém por essas bandas. – dizia o senhor enquanto o puxava para fora do automóvel.
– Se você chama isso de sorte…
– Desculpa… – disse o camponês enrubescendo – o que eu quis dizer é que você poderia morrer esquecido por aqui…
– Não… a minha namorada foi atrás de ajuda… estranho ela não ter voltado ainda.
Uma vez fora do carro, e recostado em uma árvore ainda sem sentir suas pernas, Rafael perguntou então ao caipira se ele a tinha visto. Ela era uma jovem loira, de uns vinte anos de idade, magra, e estava suja de sangue. Acrescentou, também, que ela e que tinha saído do carro cedo, procurando por socorro.
O camponês então o encarou como quem encara um louco, e com espanto no olhar respondeu: “Aquela ali?” apontando para o veículo.
Rafael olhou para o carro e viu o corpo de Jana ali, inerte.
* * *
Era já fim de tarde quando eles chegaram próximos do veículo, e ela disse para o senhor que a acompanhava:
– Ele está ali, naquele carro… você ajuda a gente? – O senhor se abaixou e olhou para o corpo ali esmagado entre as ferragens do carro, e o air-bag, e disse da melhor forma que ele conseguia:
– Moça, eu sinto muito, mas ele está morto…
– Não! – ela gritou em prantos. – Ele estava vivo há pouco… não é possível! – um momento depois, secando as lágrimas, ainda apavorada, mas tentando ser racional, disse: – bem… quem é que a gente chama? Os bombeiros? A ambulância? O IML?
– Olha dona, com a estrada como está vai ser impossível eles chegarem hoje… só amanhã à tarde provavelmente… mas vamos ligar, vem comigo. Se você quiser pode pernoitar lá em casa hoje… Minha mulher fez um ensopado, eu sei que não…
– Quê? Não mesmo! Você tá loco? Ensopado! Como se eu pudesse pensar em comer numa hora dessas! Eu não vou deixá-lo aqui sozinho… meu Deus! Ele morreu enquanto eu procurava ajuda… tadinho, tadinho… mas vai, pode ir… você liga para o SAMU pra mim? Eu espero aqui… obrigado!
– Olha moça, desculpa mas eu tenho que ir pra casa porque a minha esposa está me esperando. Mas não se preocupe, eu volto mais tarde e trago algo para você comer.
– Obrigado Sr., desculpa por eu ter gritado, é que eu, eu, eu estou perdida, eu não sei o que fazer…
– Tudo bem… eu sei. Procure manter a calma tá?
* * *
– Bem garoto, não adianta fazer nada, ela deve ter ficado do outro lado.
– Outro lado? Ela está morta! Você não vê?
– Morta… Não, sim… depende do ponto de vista. Do outro lado eu acho que é um termo mais correto. Bem, vamos, eu tenho uma porção de coisas para fazer… eu sabia que ia ter visita, mas não imaginava que seria tão cedo, achei que iria ter mais uma semana ainda…
– Como assim? Vamos deixá-la aqui? Eu não vou abandoná-la…
– Escuta, você escolhe. Mas eu não posso ficar aqui ok? Vamos até a minha casa e eu te explico tudo…
– Mas e ela? Como eu posso deixá-la? Eu a amo…
– Escuta filho, ela vai ficar bem, não se preocupe com ela tá? Eu posso te garantir isso. Ela nem está mais aqui…
– Eu sei…
– Não foi isso que eu quis dizer, olhe…
E Rafael olhou para o corpo de Jana, e o mesmo parecia ir ficando cada vez mais impalpável e intangível, como um holograma. Então, espantado ele falou:
– Como você fez isso? É algum truque barato? Você está debochando da minha cara? Isso não tem graça sabia?
– Não, fique tranquilo, isso não é um truque… eu jamais brincaria com você num momento tão delicado.
– Então qual é a sua? Quem é você afinal?
– Ah, finalmente você me perguntou! Meu nome é Ulisses José dos Campos…
– Desculpa Sr., é que com tudo isso… Eu estou muito mal… vocês já removeram o corpo dela é isso?
– Não, não é bem isso…
– Sr. Ulisses José dos Campos… Que engraçado, você tem o mesmo nome do meu falecido bisavô…
– Exatamente…
- Como o jornalista Helio Rubens vê as coisas - 9 de janeiro de 2024
- Como o jornalista Helio Rubens vê o mundo - 27 de dezembro de 2023
- Como o jornalista Helio Rubens vê o mundo - 22 de dezembro de 2023
É fundador e um dos editores do Jornal Cultural ROL e do Internet Jornal. Foi presidente do IHGGI – Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Itapetininga por três anos. fundou o MIS – Museu da Imagem e do Som de Itapetininga, do qual é seu secretário até hoje, do INICS – Instituto Nossa Itapetininga Cidade Sustentável e do Instituto Julio Prestes. Atualmente é conselheiro da AIL – Academia Itapetiningana de Letras.