Paz por uma ficha
O chão se confundia com o céu. Todo ele marcado a branco. Parecia o Paraíso. Dizem que no Paraíso tudo era sereno, calmo e limpo como a cor branca. O chão que todos pisavam era assim. Branco. Branco como o amanhecer. Três dias passaram-se desde Dia do Pensar País. Frustrados e (de)mentes do movimento CSJIPS – Clamando por Solidariedade, da Justiça, Igualdade e Paz Social – obrigaram-se a si e aos demais a pensar de novo uma terra crónica e sorrateira. Conhecem-se desde a infância e sempre conviveram. Os seus pais tudo fizeram para que se mantivessem unidos. Foram educados de que querer é poder e que a revolução é necessária para o alcance de mudanças. Mas a ambição desmedida pelo poder lançou cada um para o seu lado.
A Impunidade assaltou o palco das decisões. Por isso, foi necessária a criação da CSJIPS, a fim de traçar, juntos, estratégias para reverter a situação. O rei estava completamente ensopado na merdisse criada pelo seu complô. A vontade de encher o papo engoliu o plano de resolução das makas (I) do povo. A Corrupção ganhou contornos impossíveis de esconder. Os reguladores, em vez de regular o trânsito, caçam clientes mototaxistas ou taxistas, que alimentam a pança de delinquentes mascarados de lotadores e detentores de terras do povo.
Cada um, ao seu nível, seleciona sua vítima. Métodos da DISA são convocados se a presa mostrar-se espedicta.
A Igualdade, amável como sempre, resistia graças a sua capacidade de fantasiar-se consoante os contextos. Ela estava na periferia, entre almas escondidas em corpos cadavéricos. Já estava na sexta era das fantasias e dela a descaracterização continuava em crescendo. A Justiça, solitária, dependia das forças que um dos oponentes tivesse em maior quantidade. Ela insinuou sempre que viver é lutar incessantemente. As pessoas, cansadas ou extasiadas, invocam a Divina justiça quando a Paz Social continuava a sonhar com as vivências pós-ungamba (II), afinal o mais importante era resolver o babulo (III) do povo.
Foram todos enganados. Ele nunca foi a prioridade do rei. Diz-se por aí que ofereceu o baú em troca da cadeira 1 de Ngola. E, como em qualquer ritual de magia, existem sacrifícios exigidos. Os melhores filhos da pátria perdem-se por isso mesmo.
O álcool anestesia consciências ávidas por transformações. Protestos são feitos longe do cadeirão do rei. Todos veem os males, todos se lamentam. Todos enojam-se da miséria que decisões deslocadas da realidade causam. Vidas perdem-se. Frustrações acendem-se, decepções nascem e com ela nasceu também a Maria Coragem, disseminadora de esperança e crença aos fatigados. Ela limpa todas as lágrimas que correm dia e noite em rostos perdidos.
Era chegado o dia de acordar a Paz Social do sono que já se parecia o abismo. A Justiça confessou ter menos poder e espaço que a Impunidade. A Solidariedade alegou não fazer o seu papel porque aquela terra era só para Chico-espertos, disfarçados de visionários.
A Paz manteve-se moribunda, sem armas. Pediu uma caneta e, numa tira de papel, escreveu:
– AS CONDIÇÕES PARA A MINHA EXISTÊNCIA FORAM CRIADAS. MAS NUNCA FUI DESEJADA. ESTOU MORIBUNDA. Olhem à volta. O que vêm e sentem?! – questionou em seguida a Paz Social.
– Serenidade, tranquilidade. Vemos as nossas potencialidades humanas e naturais. – responderam em uníssono.
Uma gargalhada ecoou no espaço e um remoinho se abateu sobre a local que agora estava sem teto. Todos viram o branco esvair-se e o silêncio rei se tornou.
– O que olham os vossos olhos agora?! O que sentem?! – indagou aos seus companheiros a Paz Social.
-Vi o quão inútil tenho sido diante da podridão humana. Vi no remoinho juventude perdida por furto de galinha e fartura pública leiloada entre justiceiros. Vi homens cuspindo palavras de esperança a gente sem esperança, porque a espera partiu para o Inferno conquistar e pais caçando pão no lixo para seus filhos alimentar. Sinto-me culpada e impotente. – respondeu a Justiça.
A Paz Social sentencia: – Somos todos impotentes. Fomos armadilhados a cúmplices deste mal. Vimos todos jovens frustrados por apostas mal sucedidas. Todas as fichas não entraram. Quem as engendrou nunca quis que entrassem. A serenidade e tranquilidade eram efémeras como as fichas de esperanças perdidas que branqueavam nosso lugar e nossas vidas. Tudo por uma ficha. Paz por ficha alguma. Nunca fomos nós, mas a vontade de acertar na aposta desportiva e resolver os makulu (IV)que Ngola nos legou como herança. Esperemos para ser nem branco, nem preto. Apenas nós na terra que Nzambi nos deu.
José Bembo Manuel
martinsbembo@gmail.com
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Natural de Luanda (Angola), é licenciado em Ensino da Língua Portuguesa pela Escola Superior Pedagógica do Bengo (Angola) e docente Assistente Estagiário afeto ao Departamento de Letras Modernas da Escola Superior Pedagógica do Bengo. Membro do Conselho Editorial e Revisor Linguístico da ESP-Bengo Editora desde 2018 e revisor da RAEU – Revista Angolana de Extensão Universitária. Com as artes no sangue, é ator do Grupo Twana Teatro há 14 anos. Revisou a obra ‘Língua Portuguesa: subsídios para o seu ensino em Angola’, da autoria de Márcio Undolo (1ª edição, Editora ECO7, janeiro de 2019. Co-organizou o ‘Manual de Auxílio às Famílias de Crianças com Necessidades Educativas Especiais’ (1ª Edição, ESP-Bengo Editora, 2018).