novembro 23, 2024
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Eu sou um cão de rua

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Ivete Rosa de Souza: Crônica ‘Eu sou um cão de rua’

Foto da colunista Ivete Rosa de Souza
Ivete Rosa de Souza

Sou um cão de rua, como dizem os humanos. Nasci na rua porque minha mãe ali foi lançada, logo que descobriram que estava prenha. Eu e mais cinco irmãos nascemos no mato, bem perto de uma rodovia. Minha mãe nos amamentou e, apesar de estar fraquinha, debilitada, ainda conseguiu por dias nos manter protegidos e alimentados.

 Mas um dia ela saiu à procura de comida e não voltou. Meus irmãos choraram, a procuraram, mas foi em vão. Dois deles foram atropelados, seus corpinhos ficaram esmagados no asfalto. Outros dois se perderam no mato eu os ouvi chorar, chamar por nossa mamãe. Ficamos um outro irmãozinho que era o menorzinho e eu.

Um rapaz de moto nos viu, vi piedade em seus olhos, nos colocou em uma mochila. Fiquei assustado, mas logo dormi abraçado ao meu irmão. Demorou um pouco para chegarmos em uma casa humana, uma senhora simpática veio logo nos ver.

Nos limpou com uma toalha, eu a ouvi dizer que nem tínhamos um mês de idade. Meu irmão estava em pior estado que eu, passados alguns dias ele não quis acordar. Chorei muito quando o vi inerte, sem voz, sem brilho em seus olhinhos negros.

 A senhora que cuidou de nós me chamava de filhinho, agora eu tinha uma nova mamãe. O rapaz da moto, me levou ao Doutor Cláudio, ele me examinou e me deu umas agulhadas ouvi ele dizer ao Ronaldo meu novo papai, que era para eu não ter vermes ou doenças por ser um filhote da rua.

Não posso dizer que estou triste, ganhei uma mamãe e um papai, tenho uma casinha toda minha. A minha mamãe fez uma roupinha para mim. Ela me deixa no sofá enquanto, costura alguma coisa. Tenho comida, água, petiscos, me sinto querido e seguro.

Só me entristeço porque lembro da minha mãe e meus irmãos. Todos mortos, vítimas da crueldade humana, penso neles, não tiveram a oportunidade de conhecer um lar, nem o privilégio de ser amado e acolhido.

 Meu tutor, me coloca no colo e faz carinho. Fala comigo dizendo que me ama, e nunca vai me abandonar. Eu acredito que ainda existem bons humanos. Mas vi muitos humanos passarem por nós e nem nos notarem, tinha muito medo deles. Tomara que o Ronaldo seja mesmo sincero e nunca me abandone.

 Todos pensam que somos inúteis ou animais irracionais. Mas posso lhes provar que somos inteligentes e eternamente gratos pela vida ao lado dos humanos. Somos guiados pelo coração. Nós não sabemos de nossos pais ou irmãos. Nossa sina é estar ao lado dos humanos. Em uma ninhada cada um de nós somos escolhidos ou abandonados à própria sorte. Vi meus irmãozinhos morrerem, minha mãe desaparecer.

Na minha espera por amor, senti a dor da fome, frio dores e a falta de carinho. Ainda no ventre de minha mãe, consegui sentir a dor de um chute humano. Ainda sinto a dor em minhas costelas, meu irmão menor estava bem coladinho a mim teve uma pancada maior, vi quando sua cabecinha se inclinou para trás.

Minha mãe ficou meio manca, nunca saberei se teve alguma fratura em seus ossos, depois daquela pancada e das dores de parir a todos nós, ficou ainda mais fraca talvez com a fome e a sede tudo tenha levado a uma morte prematura, em algum lugar seu corpo se encontra sem vida, sem mesmo ter feito mal a alguém.

 Eu sou muito protegido e amado e por esse motivo ninguém poderá fazer algum mal aos meus tutores. Eu os defendo com toda a minha coragem e amor. Hoje eu corri atrás de um homem que era muito esquisito, parecia ter más intenções. Eu mordi e ele quase me alcançou com um chute.

 Mas minha mamãe me viu e gritou para o malfeitor. Meu papai pegou a moto e correu atrás do bandido. Algumas quadras depois esse meliante foi preso. Minha mãe me deu petiscos e biscoitos dizendo que eu era um herói. Não sei se sou esse herói que ela fala, só sei dizer que amo os dois, que sou capaz de morrer por eles.

Foi o Ronaldo quem me tirou do mato, da chuva fria. Foi ele quem me deu uma vida sendo parte de uma família humana. Eu sei que muitos não tem a mesma sorte. Muitos são abandonados, doentes velhos ou apenas indefesos filhotes. Outros são os acorrentados, sofrem dores por surras ou pancadas., mesmo tendo donos, que deveriam protegê-los.

 Tem outros que sofrem coisas horrendas, com os humanos que os tem sob sua tutela. Apesar de meus poucos meses de vida eu sei tudo o que se passa com meus companheiros na rua. Como sei disso? Sei por que eu já nasci outras vezes. Já estive em outros lares, já fui feliz. Também já fui idoso e abandonado cego e com dores nas juntas. Não consegui andar por muito tempo. Em menos de um mês morri e renasci.

 Sabe como eu sei? Vivendo intensamente todas as vidas que vivi. Foi Deus quem me fez assim. Tão cheio de amor, mais importante sempre tenho que estar bem-disposto e contente, para merecer o amor dos humanos. Enquanto eu vou passando pela existência humana, aprendo a entendê-los e a respeitá-los. É uma pena que alguns deles não entendam que estamos neste planeta para ensinar o verdadeiro sentido de amar, de ser leal, compreender a verdadeira alegria, gentileza e, acima de tudo, respeito.

 Deus nos fez assim perfeitos para amar sem preconceito, sem medo e submissos aos humanos. Nós viemos ao mundo para doar compaixão, felicidade e a vontade de ser útil. Nós entendemos quem não nos vê, nós sentimos as mudanças de humor dos humanos. Entendemos a dor, a tristeza e se gostam ou não de nós.

Como eu gostaria de saber falar, contar tudo o que sei. Sabe, vivemos muito pouco tempo neste planeta. Porque viemos revestidos de amor puro e simples, não nos importamos com a nacionalidade, cor da pele, ou status social. O que nos importa é ser amados. Ter um cantinho quente para dormir água e comida. E seremos sempre companheiros de nossos tutores, sempre amigos fiéis, que nada pedem, mas têm muito a oferecer.


Ivete Rosa de Souza


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Ivete Rosa de Souza
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