Evani Rocha: ‘O coma’
Aqui um trecho da história contada por Dolíria, após um longo período em coma:
“Por frações de segundos, de repente, não era dia nem noite, não havia tempo e nem lugar. Nem Sol, nem luz, nem escuro, nem chuva…
Tudo era um azul infinito sem começo ou fim. Outrossim, haviam rostos, pés e mãos desconexos, palavras soltas como lamento. Rostos sem nome, não reconhecíveis, dedos procurando amparo. Haviam névoas negras que por vezes tomavam o azul profundo e nada mais era visto. Não tinha teto nem chão. Era devoluto, vazio e solidão. Não havia ar que se respirasse, nem flores murchas, afinal, não havia jardim.
Das bocas pálidas a dor saia contorcendo-se, formando figuras tristes e desfocadas. Não se sabe exatamente o que era: se coisas, objetos, seres vivos ou sentimentos. Tudo era abstrato. Dos narizes compridos os odores fétidos impregnavam as névoas…e as palavras se enfileiravam, dançavam, pululavam e mudavam de forma.
Ao mesmo tempo eram fileiras, tranças, pirâmides, retângulo ou quadrado de palavras. Figuras geométricas das mais diferentes possíveis. Mas não havia nada que se pudesse ler ou entender. Era um discurso frívolo e sem sentido. Nenhum texto poderia expressar os sentimentos e emoções. Não havia enredo, atores ou palco.
Mas dos olhos esbugalhados minavam gotas viscosas e escarlates. Não caiam, pois ali não havia gravidade. Os olhos pareciam subir e descer arrastando esses filetes sanguíneos. Não, eles não saiam do exato lugar. Assim como os dedos longos, ocres, e unhas pontiagudas, arranhando o nada e as mãos descascadas acompanhavam letárgicas os movimentos dos dedos.
Era realmente ermo: nem campo nem cidade, nem gente e nem bicho. Apenas fragmentos, como descrito. Ouvia-se um eco que ressoava no vácuo imperfeito, mas era através apenas de ondas eletromagnéticas. Não era simplesmente um eco, era um grito ou um grunhido de dor. Era amedrontador. Mas isso só ocorria dentro daquelas cabeças boiantes. O medo pairava em meio ao azul cobalto, ou por vezes se escondia em meio ao nevoeiro. Se apresentava como uma massa negra, opaca e disforme. Não viam-se portas: nem entrada ou saída. Não viam-se túneis, nem vias, nem corredores. Tudo era nada. O nada apresentava-se como se algo fosse. Mas inexequível, não palpável.
Em meio a esse milésimo caótico, eis que surge uma luz muito brilhante. Tinha um tom azulado, emitia uma suavidade, uma brandura e encanto inexplicáveis. Seus raios eram como longos filamentos que transpassaram o vazio. Foi entremeando aos fragmentos de coisas, entrelaçando entre a névoa e o infinito. Era como um acalanto. Era um bálsamo. Esses filamentos foram engolindo a negra névoa, agregando os pedaços do nada: surgiam, portas, corredores e jardins. Flores vivas dançavam ao vento. Uma brisa suave tomou conta da verde relva que cobriu os montes e vales. Então, algo surgiu no horizonte: Uma gigante estrela avermelhada derramava sua energia sobre a base terra. E a transformação continuou por longos segundos. Agora havia tempo.
No lugar do infinito apareceu o firmamento, cheio de nuvens carregadas que desaguou por horas sobre a terra. Agora havia um lugar concreto. Aqueles rostos, mãos e pés desconectados, eram então, imagens perfeitas de gente: alguns sorridentes outros nem tanto. Suas mãos estavam ocupadas em seus afazeres rotineiros. De seus olhos podiam cair gotas transparentes como vidro.
E a água límpida e translúcida espalhou-se e fez-se mares e oceanos. Nascentes brotavam no topo das serras e escorriam serpenteando entre as veredas. Via-se o eco e o medo, sumindo num buraco negro em forma de um grande espiral. E os longos filamentos brilhosos terminaram seu trabalho, organizando palavra por palavra em folhas brancas. Colava folha após folha. Podia se ler textos inteiros, onde constavam histórias tristes, felizes, dramáticas e até cômicas. Agora, o nada era tudo concreto e palpável, exceto a dor que permaneceu escondida entre o céu e a terra. Essa, os filamentos não conseguiram atingir. Por certo camuflou-se no âmago dos corações humanos.
No entanto, terminou-se a metamorfose no vácuo. Os filamentos suavemente fecharam a capa do livro.
Sentei-me rapidamente na cama. Tudo em volta era branquíssimo: O leito, as minhas roupas, das pessoas à minha volta…Eu tinha um milhão de perguntas, mas antes que abrisse a boca, vi os últimos filetes brilhosos escorreram pela janela do quarto. Restou-me apenas um livro fechado sobre as mãos.”
Evani Rocha
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Evani Rocha, natural de Chapada dos Guimarães (MT) é bióloga e professora da rede pública há 23 anos, com pós-graduação em Educação, especializada em Literatura Brasileira. Na área literária é poetisa, escritora e autora dos livros: Retalhinhos (Poesia, 2020) e Folhas de Outono (Contos, lançado na Bienal/Rio 2023). Na área acadêmica, é Acadêmica Internacional da FEBACLA – Federação Brasileira dos, entidade da qual recebeu o título Embaixadora Cultural da Paz. Apaixonada pelas artes, em especial a pintura e a escrita, Evani Identifica-se como uma pessoa ligada umbilicalmente à natureza, onde passou boa parte de sua infância. As artes e a natureza são sua fonte de inspiração, motivo pelo qual sua pintura e escrita têm uma voz que ecoa, quase sempre, desse lugar comum.
Estou perplexa e incrivelmente tocada com a leitura deste “Coma”, uma sensação de realismo,,onde o nada tomou forma criadora em meu momento de vida.Aprendi uma sensação inusitada.
Premiada autora, pela perfeição de detalhes nesta escrita.
Ella Dominicci, fico lisonjeada e grata pelas suas palavras. É muito bom quando uma leitura nos traz uma sensação nova. Obrigada pelo seu importante comentário.
Grande abraço🌻
Parabéns!!!!!