Evani Rocha: Crônica ‘Hoje de manhã’
Hoje parece que voltei ao tempo. Sentei-me bem cedinho numa praça onde costumava sentar, há mais de trinta anos. Vejo pessoas ensimesmadas, olhando ao longe, olhar perdido … o movimento de veículos ainda é calmo. Talvez, esse escasso silêncio da manhã permita que as pessoas se olhem, que olhem para dentro de si, nem que seja por alguns instantes.
Os pombos caminham entretidos bicando o chão à cata de algumas migalhas. As lojas vão se abrindo aos poucos, revelando as vitrines decoradas com cartazes promocionais.
Não tem nenhum sentido para mim.
Tudo parece correr em câmara lenta: A fachada cinza desbotada do antigo correio, os casarões ocre com enormes janelas de madeira, relembrando a época colonial. O coreto no centro da praça, manchado de branco. Suspeito que sejam fezes dos pombos, moradores que nunca abandonam esse lugar. Olho em volta, algumas pessoas aqui outras acolá, conversando. Vejo o movimento dos seus lábios, mas nada ouço. Imagino que esse dia, meio que mórbido, inspire a gente a falar da solidão, do cansaço, das horas que se arrastam para aqueles funcionários de lojas, de farmácias, para as pessoas em situação de rua…
Uma mulher enxuga os olhos, ela não conversava com ninguém, mas provavelmente hoje, ela tenha falado consigo mesma, mexido nas feridas que estavam camufladas pela ausência de atenção. Num canto da praça, de cabeça baixa, está um homem. Percebo que assobia baixinho e organiza uma série de bugigangas numa espécie de tela. É um vendedor na rua. A pele bem queimada de Sol, as vestes desgastadas e os cabelos arrumados em várias trancinhas que lhe caem sobre a testa. Quem saberia dizer o que pensa essa gente em situação de rua? Será que ele aguarda a lanchonete da esquina abrir para pedir um singelo cafezinho puro?
O silêncio vai embora preguiçoso. Bem que ele gostaria de ficar mais por aqui, porém, o movimento de transeuntes e automóveis já lhe obriga a deixar o posto. Eu continuo sentada com minha elucubração. Essa de ‘o silêncio querer ficar’ é por minha conta, pois tenho certeza que sou eu quem quer que ele fique pra sempre. Como para sempre parece ter ficado a cripta silenciosa da matriz. Imponente arquitetura, que teve início como uma simples capela no início do século dezoito, sendo reconstruída no ano de 1973. Tem seu belo altar adornado com pastilhas e a poderosa imagem do Senhor Bom Jesus, Padroeiro da Cidade.
Estou imaginando esses detalhes, porque já os vi em outra oportunidade. Mas agora vejo somente a suntuosa fachada formada por duas torres, e os grandes relógios marcando cada segundo que estiveram ali, presenciando o nascer do Sol, por muitas dezenas de anos. Eu creio que há clamores, murmúrios e orações circulando em cada cantinho dessa Igreja. Pairam no ar os lamentos, os pedidos, as dores dessa gente que não tem mais a quem recorrer…
Sim! A Matriz Nosso Senhor Bom Jesus de Cuiabá é um símbolo da arte religiosa do País, mais que isso! É um referencial identitário do povo dessa cidade.
Hoje, Arquidiocese da Capital, depois de passar por demolição, reconstrução e reformas que mudaram bastante suas características originais.
Como eu queria ter vivido nesses tempos do ouro, das ruelas de pedra, dos casarões de adobe com as portas e janelas escancaradas na rua. Dos enormes quintais e mangueirais. As casas não careciam de muro, a criançada podia brincar na rua sem medo. Tempo em que as coisas faziam mais sentido. Hoje, essas estruturas carregam apenas história. São histórias de luta sim, mas de vitória digna, de gente de verdade, de amor ao próximo, valores…
Observo as portas das lojas se abrirem por completo, o Sol alto indica que se inicia o horário comercial. Percebo uma agitação das pessoas que passam, algumas, quem sabe, atrasadas para bater o ponto no trabalho.
Os pombos ainda bicam por aqui, passam pertinho de mim. Eu acho que estou invisível nessa cidade, que agora acorda, barulhenta e veloz.
O sino não badalou, nem sei se ele ainda se dá ao trabalho de fazê-lo. Alguém estaria interessado em ouvir? Fico olhando o prédio descascado do antigo correio. Se me abstenho do presente, vejo ‘um entra e sai’ frenético de pessoas ali, nos anos oitenta.
A banquinha de revista da frente já não existe mais. Talvez o revisteiro não resistiu ao tempo, e se foi. Eu também tenho hora marcada para ir, mas ainda é cedo, posso ficar mais um pouco por aqui e esperar. Gostaria de ver os pesados janelões de madeira do museu se abrirem. Se puder, vou dar uma volta por lá, quem sabe eu consiga encontrar sentido nas peças históricas que resistem ao tempo e que, silenciosa e anonimamente, contam detalhes de uma época em que as pessoas tinham tempo de viver.
Evani Rocha
Contatos com a autora
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Evani Rocha, natural de Chapada dos Guimarães (MT) é bióloga e professora da rede pública há 23 anos, com pós-graduação em Educação, especializada em Literatura Brasileira. Na área literária é poetisa, escritora e autora dos livros: Retalhinhos (Poesia, 2020) e Folhas de Outono (Contos, lançado na Bienal/Rio 2023). Na área acadêmica, é Acadêmica Internacional da FEBACLA – Federação Brasileira dos, entidade da qual recebeu o título Embaixadora Cultural da Paz. Apaixonada pelas artes, em especial a pintura e a escrita, Evani Identifica-se como uma pessoa ligada umbilicalmente à natureza, onde passou boa parte de sua infância. As artes e a natureza são sua fonte de inspiração, motivo pelo qual sua pintura e escrita têm uma voz que ecoa, quase sempre, desse lugar comum.