Elaine dos Santos:
‘Uma linha férrea, um córrego, muita nostalgia’
Consta que o povo gaúcho não gosta que digam que somos o último estado do Brasil. Acostumei-me, pois, a referir que nasci no estado mais meridional dessa terra linda e trigueira.
Vivo quase no coração do Rio Grande do Sul, o que significa afirmar que tanto Uruguai como Argentina estão a poucos quilômetros de distância. Devo confessar-lhes: a minha alma tem mais tango do que samba. Deve ser o clima, deve ser a geografia, devem ser os costumes.
Engraçado mencionar o samba, uma vez que nasci numa segunda-feira de Carnaval, às 16h e, segundo a minha falecida mãe, caía uma leve neblina sobre a cidade – minúscula cidade.
Antes de mim, na verdade, 50 anos antes, em 18 de novembro de 1914, nasceu um menino, filho do agente da estação ferroviária que deu origem ao pequeno povoado (o município que existe hoje é outras histórias). Se o tempo nos separa, o espaço nos aproxima.
Os primeiros anos de vida foram vividos nas cercanias da estação férrea e do pequeno córrego (sanga, como se diz no Rio Grande), que, ainda hoje, timidamente, corta a cidade no sentido sul-norte. Por vezes, a sanga se enfurece e, tangida pela chuva forte, sai do leito, mas ela tem as suas razões: lixo e abandono.
O menino viveu pouco tempo no povoado, os seus pais, ferroviários, foram transferidos e ele seguiu a vida. Estudou. Ele, o menino, dedicou-se àquela arte que, conforme contam, fazia com os restos de carvão das locomotivas a vapor. Tornou-se um dos maiores pintores expressionistas brasileiros da segunda metade do século XX. Refiro-me a Iberê Camargo.
Artista consagrado, algumas pessoas que o reencontraram, assim como estudiosos de sua Arte, destacam uma paisagem: a linha férrea que se perde no horizonte; às margens do córrego; as várzeas tanto do córrego quanto do pequeno rio que há nas proximidades da cidade, as coxilhas (ou, como queiram, colinas). Um nome: solidão.
Diferentes estudiosos da obra do pintor referem a infância e a solidão como marcantes em sua produção pictórica: não apenas a pequena Restinga Seca, no coração do Rio Grande, que nos une, mas outras estações férreas, outras estradas, outros campos, outras várzeas, assim como estão presentes os serões familiares, a mãe em sua labuta como telegrafista, mas como dona da casa, costurando as roupas da família ou ainda as brincadeiras do menino no entorno da estação.
Inúmeras vezes, eu regresso àquele local: a estação ferroviária, a caixa d’água, ambas desativadas; a linha férrea, que se estende entre o campo e a várzea, mas, depois das enchentes de maio, ali não cruzam nem mais os trens de carga; o córrego assoreado; o campo e a colina. Reencontro os meus pais e os meus avós.
Volto a ser criança, aconchego-me novamente no colo de meu avô, ouço histórias. É incrível a força que aquele local tem. A força da terra, a força da mãe-terra, a força da natureza, a força da água que corre, mas também a força da mão humana, a força da avassaladora mão humana que destrói, que esquece, que se omite.
Contudo, ali sobre a linha férrea, sou ainda a professora de Literatura, que optou pela Sociologia da Literatura, que lê as obras literárias ou visualiza em qualquer obra artística a expressão da sociedade conforme a entende o artista.
Iberê Camargo, que expôs em Nova Iorque, Roma, Madri, Tóquio, mundo afora, era filho de ferroviários, uma das classes de trabalhadores sindicalmente melhor organizadas na virada da primeira para a segunda metade do século XX. Tinha, pois, uma boa consciência de classe, que foi adquirida em casa e em escolas que estudou. Tinha, um tanto além disso, a sensibilidade do artista, aquele que vê, sente, pressente e entende a corrosão social
A segunda fase de sua obra traz o homem culto, pintor respeitado, que observa a sua sociedade, trata-se de ‘Os ciclistas’, sejam homens, sejam mulheres, que, uniformizados, deixam as fábricas, são operários, desprovidos de identidade.
Na terceira fase, ele vai adiante: ‘As idiotas’, são a representação de todos nós, consumidos pelo trabalho, pelo dinheiro, pela necessidade de sobreviver. Há um aprofundamento no que se poderia chamar de alma humana vista pela ótica da pintura, desconfigura-se o corpo.
Se, para o pintor, a sobrevivência estava atrelada ao trabalho, ao alimento, à saúde; por vezes, pergunto-me se não estamos apenas sobrevivendo num mundo pautado pela guerra, pelas enchentes, pelas queimadas, pelo ódio disseminado nas redes sociais. Que tempo (s) estamos nos dando para contemplar e amar, mais que trabalhar, amealhar recursos?
Profª. Dra. Elaine dos Santos
Contatos com a autora
- Sobre loucura e preconceito - 25 de novembro de 2024
- Sobre compromisso e partilha do conhecimento - 22 de outubro de 2024
- Uma linha férrea, um córrego, muita nostalgia - 3 de outubro de 2024
Natural de Restinga Seca (RS), é licenciada em Letras, Mestre e Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Tem formação em espanhol pela Universidad de La Republica, Montevidéu. Possui 29 artigos acadêmicos publicados em revistas nacionais na área de Letras com classificação Qualis, além de participação em eventos com trabalhos completos e resumos. É autora do livro Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe, adaptação de sua tese de doutorado, e coautora em outros livros versando sobre Direito, História, Educação e Letras. É revisora de textos acadêmicos, cronista com textos publicados em jornais regionais e estaduais e participação em mais de 80 antologias.
Elaine, não dá pra ser imune à nostalgia que desta crônica transborda.
Também voltei a minha infância!
Eu gosto dessas memórias, de manter viva a história da nossa gente. Creio que, ao fim e ao cabo, não constaremos em livros de História, mas seremos amor no coração daqueles que tocamos. Um abraço!
Minha amiga querida, gosto de seus textos e da magia que transpiram a mestria de suas recordações. As imagens ficam palpáveis nas palavras ditadas por sua memória.
Minha querida, obrigada por suas palavras, elas sempre foram um grande incentivo para continuar. Abraço.
É importante relembrar cenas positivas da nossa infância, faz bem ao nosso psíquico e ao nosso coração. E sem falar que renova as energias.
Obrigada, Dorilda por seu comentário. Eu aaaamor essa recordações, elas presentificam tempos, pessoas, lugares. Grande abraço.