Elaine dos Santos: ‘Soy Pedro, vengo de las Misiones’


às 11:32 PM
Pedro, o Missioneiro, nasceu nos Sete Povos das Missões, não conheceu a mãe, uma indígena, que faleceu durante o parto, ela esvaiu-se em sangue:
“deitada de costas, o sangue escorria-lhe das entranhas, empapava cobertores e pingava nas gamelas que os enfermeiros haviam colocado ao pé do leito (…). De olhos muito abertos – olhos de animal acuado -a índia [que fora encontrada pelos indígenas abandonada no meio do caminho, já em trabalho de parto] mirava fixamente o cura, enquanto de sua boca entreaberta saía um ronco estertoroso”. (VERISSIMO, 2000, p.36)
No hospital da Missão, outros doentes gemiam, lamentavam-se como se sentissem a morte rondando o local, no entanto, enquanto uma vida findava, outra vida, cheia de viço, dormia em um berço tosco, tinha a pele muito mais clara que a mãe e os dois padres, que o observavam, logo entenderam que a criança era filha de um tropeiro paulista.
“Aqueles malditos vicentistas!” – pensou Alonzo. “Não se contentavam com prear índios e levá-los como escravos para a sua capitania: tomavam-lhe também as mulheres, serviam-se vilmente delas e depois abandonavam-nas no meio do caminho, muitas vezes, quando elas já se achavam grávidas de muitos meses. Aquele não era o primeiro caso e certamente não seria o último”. (VERISSIMO, 2000, p. 36)
Batizado Pedro, o menino cresceu na Missão, aos cuidados do cacique Dom Rafael, seguido de perto pelo Padre Alonzo. Aos oito anos, o mestiço já sabia ler, escrever, fazer contas e falava, além do guarani, espanhol, lendo, com relativa facilidade textos em latim.
Tornou-se coroinha e, com os outros meninos, ao cair da tarde, rezava a Ladainha de Nossa Senhora. Eis que lhe chamou a atenção a expressão “Rosa Mística”, que passa a povoar-lhe o pensamento, demorou um tempo para questionar o significado ao Padre Alonzo que lhe explicou que Rosa Mística é uma referência à Nossa Senhora, Mãe de Deus.
A vida seguia nas Missões: o menino aprendia novos ofícios, a doutrina cristã, elementos musicais, participava da limpeza do trigo, tomava parte no teatro e nas danças religiosas.
Pedro também gostava de andar pelos campos, caçar passarinhos. Por vezes, porém, intrigavam-lhe alguns mistérios: o dia e a noite, o trovão e o relâmpago, a morte.
Com o passar do tempo, Pedro, o Missioneiro, passou a afirmar que via Nossa Senhora, em carne e osso. Teimava com os caciques, com os padres. Dizia-se filho da Virgem (“hijo de la Virgen”).
Do ponto de vista da crítica literária, há uma explicação muito plausível para o sangramento da mãe indígena e essa suposta filiação à Virgem Maria. Pedro, segundo o romance, é o ancestral mítico do gaúcho, o primeiro homem – meio branco, meio indígena -, fruto de uma relação fora do casamento, o que justificaria essa purificação pelo sangramento da mãe e a maternidade atribuída à Mãe de Deus.
Do outro lado do Oceano, em 1750, as Coroas de Portugal e Espanha, assinaram o Tratado de Madri, a Colônia de Sacramento, fundada pelos portugueses, passaria para o domínio espanhol. Os Sete Povos das Missões tornar-se-iam portugueses. Esqueceram de combinar com os jesuítas espanhóis e com os indígenas!
As Guerras Guaraníticas estenderam-se entre 1752 e 1756, quando os jesuítas foram expulsos do Rio Grande do Sul, muitos indígenas foram mortos ou presos e os povoados arrasados. Antes do fim, Padre Alonzo presenteou Pedro, o Missioneiro, com um punhal e incitou-o a fugir.
A história fictícia de Pedro Missioneiro, descrita no capítulo “A fonte”, do volume I de “O continente”, que compõe a trilogia de “O tempo e o vento”, foi-nos legada por Erico Verissimo, que, somente em “O tempo e o vento”, brindou-nos com Ana Terra, Rodrigo Cambará, Bibiana Terra Cambará, a Teiniaguá, Licurgo Cambará, para me restringir aos volumes de “O Continente I” e “O Continente II”.
O ano de 2025 é excepcionalmente significativo para a literatura produzida no Rio Grande do Sul, afinal, marca 120 anos de nascimento de Erico Verissimo, um dos mais profícuos prosadores deste chão. Além disso, o autor faleceu em 28 de novembro de 1975, 70 anos atrás.
Mais do que nunca é o momento para retomar a grandeza de sua obra, apenas não apenas em “O tempo e o vento”, a mais conhecida; estudar, analisar, discutir os valores, as tradições, reler à luz da moderna teoria da literatura, enfim, revisitar um pouco da própria História oficial e oficiosa do Rio Grande do Sul. Fica o convite para que você leia os volumes de “O retrato” e “O Arquipélago”, que completam “O tempo e o vento” e permitem entender melhor como se forjou a sociedade do estado mais meridional do Brasil, sob a ótica da Literatura. Seja bem-vindo!
Elaine dos Santos
- Entre falar, escrever e, quem sabe, expressar-se - 2 de abril de 2025
- Soy Pedro, vengo de las Misiones - 10 de março de 2025
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Natural de Restinga Seca (RS), é licenciada em Letras, Mestre e Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Tem formação em espanhol pela Universidad de La Republica, Montevidéu. Possui 29 artigos acadêmicos publicados em revistas nacionais na área de Letras com classificação Qualis, além de participação em eventos com trabalhos completos e resumos. É autora do livro Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe, adaptação de sua tese de doutorado, e coautora em outros livros versando sobre Direito, História, Educação e Letras. É revisora de textos acadêmicos, cronista com textos publicados em jornais regionais e estaduais e participação em mais de 80 antologias.
Elaine, a História do Rio Grande do Sul é riquíssima! Que bom que você nos traz boas e memoráveis parcelas delas!
O Rio Grande do Sul, segundo o meu ponto de vista, é cheio de peculiaridades: nascemos espanhóis, segundo o Tratado de Tordesilhas (1494), que traçava uma linha imaginária entre Belém (PA) e Laguna (SC), o que ficasse a oeste era espanhol.
Em 1534, há o primeiro registro histórico da barra do Rio Grande (a cidade portuária) no mapa de Gaspar de Viegas, mas o povoamento só começaria em 1737, justamente em Rio Grande com a construção de um forte militar para dificultar o contrabando entre Laguna e a foz do Rio da Prata. Por essa razão, ocorre o Tratado de Madri (1750), a dizimação dos guaranis nos Sete Povos e o grande engodo aos ilhéus, da região dos Açores, “convidados” a ocuparem a região, eles foram se empilhando no Desterro (atual Florianópolis), depois em Rio Grande – espaço em que não se plantava nada, era churrasco no café da manhã, no almoço e na janta, até serem acolhidos por Jerônimo D’Ornellas, na região de Porto Alegre. Nunca chegaram aos Sete Povos das Missões.
É uma civilização forjada no lombo do cavalo, na briga com os castelhanos, portanto, na força, na virilidade, na violência.