Clayton Alexandre Zocarato: Conto ‘Vazio!’


às 20:52 PM
O rádio chiava baixinho na prateleira, perdido entre livros embolorados e porta-retratos com rostos que já não existiam.
Oswaldo, sentado em sua poltrona de couro puído, olhava pela janela como quem tenta decifrar o tempo — não o clima, mas o tempo em sua essência: o que já passou, o que virá, e, mais cruelmente, o que nunca veio. Lá fora, o mundo parecia indiferente. Um mundo que seguia, apesar da sua ausência voluntária.
Passavam carros, crianças com mochilas, cachorros levados por donos apressados. Havia vida, sim. Mas não a sua. A sua ficara presa em algum ponto distante da linha do tempo, talvez numa praça de cidade pequena, numa conversa esquecida, num beijo roubado numa tarde de verão.
Oswaldo levantou-se com esforço. O corpo já não obedecia com a agilidade de outrora, mas ainda seguia — teimoso, como ele.
Foi até a estante e pegou um caderno surrado. Ali, escrevia reflexões que ninguém lia. Não para serem lidas, mas para existirem. Era um hábito que tomara quando se dera conta de que já não conversava com ninguém. O silêncio externo o havia empurrado para o barulho interno — e esse, por vezes, era ensurdecedor. “Existir é suportar o vazio com dignidade.” — rabiscou na folha.
Depois olhou a frase como quem contempla uma sentença de morte escrita à mão. Era um homem que se desfez das coisas aos poucos: da juventude, dos amigos, da mulher, do filho que se mudara para outro país e agora lhe escrevia apenas em datas especiais, por obrigação mais que por afeto.
Oswaldo não culpava ninguém. No fundo, aceitava que “tudo o que era sólido se desmanchava” — como dissera um velho filósofo em algum livro que agora jazia esquecido na estante. Lembrava-se de quando era jovem e se sentia imortal. A juventude tinha esse dom: mascarar a angústia com projetos, com urgências falsas, com promessas de sentido. Mas o tempo revela: não há sentido que resista à dúvida. E era disso que ele se alimentava agora — da dúvida. Não de forma amarga, mas contemplativa, como quem observa uma fogueira se apagar sem pressa.
Sentou-se de novo. A poltrona parecia moldada ao seu corpo, como se ele e o móvel fossem uma mesma entidade. E ali, olhando o mundo pela moldura da janela, sentiu saudade de si. Não dos outros, mas de si — daquele que poderia ter sido, do Oswaldo que ficou pelo caminho. Era esse o maior isolamento: não o do mundo, mas o de si para consigo. Sentia-se estrangeiro dentro da própria pele.
O rádio chiou mais uma vez. Tocava uma música antiga, daquelas que rasgam a alma sem pedir permissão. E Oswaldo sorriu — não com alegria, mas com a melancolia de quem reconhece a beleza trágica da vida. Porque, afinal, talvez o segredo fosse esse: aceitar o absurdo da existência, abraçá-lo como um velho conhecido, e continuar — mesmo que apenas para assistir ao mundo passar da janela, com um caderno no colo e o coração em silêncio.
Clayton Alexandre Zocarato
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Natural de São Paulo, Capital, possui Licenciatura em História pelo Centro Universitário Central Paulista – Unicep – São Carlos/SP e graduação em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano – Ceuclar – Campus de São José do Rio Preto/SP. Escreve regularmente para o site Recanto das Letras (www.recantodasletras.com.br) usando o pseudônimo ZACCAZ, mesclando poesia surrealista, com haikais e aldravias. É Comendador da Ordem Cultural Beethoven.
Clayton, este é um texto que eu adoraria ter escrito!