Fidel Fernando
‘A repetição no texto académico: recurso ou ruptura?’


às 13:41 AM
Algumas palavras da língua portuguesa apresentam muitos sinónimos, o que permite a expressão de ideias de maneiras distintas. Não é em vão que a repetição de palavras em textos académicos é, frequentemente, vista como um sinal de pobreza lexical, uma vez que pode comprometer a clareza e a fluidez da escrita.
Nos textos académicos, a repetição excessiva pode ser um obstáculo à compreensão. Ao revisar textos de candidatos a licenciados, mestres e doutores, é comum encontrar passagens que evidenciam essa problemática. Por exemplo, a frase: “…para ser professor, é necessário que seja ‘munido’ de conhecimentos científicos da disciplina que estiver a leccionar e ‘munido’ de conhecimentos técnico-práticos ou didáctico-pedagógicos”, revela uma repetição desnecessária da palavra ‘munido’. Uma reescrita mais eficaz poderia substituir o segundo uso por ‘possuir’ ou ‘ter’, como em: “…para ser professor, é necessário que seja munido de conhecimentos científicos da disciplina que estiver a leccionar e ‘possuir’ conhecimentos técnico-práticos ou didáctico-pedagógicos.” Essa simples alteração (será simples?) não só enriquece o texto, mas também mantém a ideia original intacta.
A música contemporânea angolana frequentemente utiliza a repetição como recurso estilístico para enfatizar emoções e criar um impacto memorável. Por exemplo, na canção ‘Nossas Coisas’, de Ary e C4 Pedro, ouve-se “Minha razão quando a razão não dá razão pra ninguém, eh”. Aqui, a repetição de ‘razão’ serve para reforçar sentimentos de amor, criando uma ressonância emocional que cativa o ouvinte. Essa técnica, embora contrária à norma dos textos académicos, cumpre um propósito distinto: a criação de uma experiência estética rica.
Na literatura de expressão portuguesa, Carlos Drummond de Andrade, em 1928, publicou, na Revista de Antropofagia, um poema rico em repetição: “No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho”. A repetição, nesse contexto, não é uma falha, mas, sim, uma estratégia estilística que enriquece a obra literária, focando nos problemas (pedras) que as pessoas encontram na vida.
Contrapõe-se a isso a abordagem dos textos académicos, onde a repetição pode ser vista como um sinal de falta de rigor. Em passagens como: “A pesquisa foi realizada em três etapas fundamentais: A primeira ‘consistiu’ em averiguar, com a instituição, o índice de reprovação; a segunda etapa ‘consistiu’ em averiguar os prováveis factores no fracasso da aprendizagem escolar; a terceira etapa ‘consistiu’ em fazer um cruzamento entre os questionários aos alunos e professores…”, o autor poderia optar por sinónimos como ‘visou’, ‘objectivou’, ‘prendeu-se’, ‘teve finalidade de’ para evitar a repetição da palavra ‘consistiu’. Essa prática não só melhora a clareza do texto, mas também demonstra um domínio mais profundo da língua.
Além disso, frases como: “A formação específica é, absolutamente, necessária para quem ensina, mas, ‘de maneira alguma’, suficiente para o exercício da profissão. O professor que carrega apenas esta componente, ‘de maneira alguma’, contribui para o sucesso académico dos seus alunos”, mostram como a repetição de expressões pode ser evitada. O autor poderia substituir ‘de maneira alguma’ por “de jeito algum” ou mesmo ‘não’, o que não apenas diversifica a linguagem, mas também mantém a força do argumento.
Outro exemplo que sugere uma pobreza vocabular e uma falta de domínio sobre as possibilidades da língua: “Essas condições prévias gerais são impossíveis de serem criadas em pouco tempo e tem logicamente que ‘se relacionar’ com as condições prévias específicas e com todo trabalho a fim de ‘se relacionar’ também com a disciplina”. A adopção de palavras sinónimas, tais como ‘ligar-se’, ‘correlacionar-se’ ‘associar-se’ não alteraria o sentido e elevaria, evidentemente, a qualidade do texto.
Em linhas gerais, a variação lexical é crucial para a eficácia da comunicação em textos académicos. Enquanto nas obras literárias e musicais a repetição pode servir para propósitos estilísticos, nos textos científicos/académicos, deve ser evitada sempre que possível. A capacidade de substituir palavras repetidas por sinónimos não apenas demonstra um domínio mais amplo da língua, mas também enriquece a experiência do leitor.
Assim, é fundamental que os autores sejam encorajados a explorar a riqueza da língua portuguesa, utilizando-a de forma criativa e consciente. Ao aprender a distinguir entre os diferentes tipos textuais e a utilizar a repetição de forma adequada, podemos contribuir para uma escrita académica mais clara, envolvente e eficaz.
Fidel Fernando
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Fidel Fernando reside em Luanda (Angola).
Academicamente, é licenciado em Ciências da Educação, no curso de Ensino da Língua Portuguesa, pelo Instituto Superior de Ciências de Educação (ISCED/Luanda), onde concluiu sua formação em 2018. Antes disso, obteve o título de técnico médio em educação, na especialidade de Língua Portuguesa, pelo Instituto Médio Normal de Educação Marista (IMNE-Marista/Luanda), em 2013. Profissionalmente, atua como professor de Língua Portuguesa, dedicando-se à formação e ao desenvolvimento de habilidades múltiplas nos seus educandos. Além das suas funções docentes, exerce a atividade de consultor linguístico e revisor de texto, contribuindo para a clareza e precisão na comunicação escrita em diversos contextos. Tornou-se colunista do Jornal Pungo a Ndongo, onde compartilha semanalmente sua visão sobre temas atuais ligados à educação e à língua.


Fidel, seus textos são saborosíssimos para os amantes da boa redação, e utilíssimos para os que ainda têm certa distância dela.
Satisfação e gratidão imensa pelas palavras que me dirige, caro Sérgio!!