Evani Rocha: Conto ‘Papel couché‘


às 23h40
Sobre o papel couché desliza um pincel capcioso. A tinta fresca vai delineando caminhos, céu e mar. A mão áspera se movimenta, como que à espera da perfeita inspiração. Busca nas veias as cores do sangue: vermelho escarlate, cereja, ferrugem…
Sente na boca o gosto das tintas que compõem aquela imagem desfocada. E se não tivesse omitido? Talvez agora não teria que representar! Pois é inclemente, não é conveniente desvelar…
Por vezes, a mão cerrada escora o queixo fino e marcado. Os olhos úmidos não definem as imagens que se movem ao longe. Pensa que, talvez, seriam as flores amarelas dos ipês se desgarrando de sua mãe, cuja fortaleza lhe sustentou até o último momento…
Hoje caem desfalecidas e murchas. Sente-se murcha igual, fragmentada, desbotada como as flores que se entregam ao chão…
Há dias, como esse, que também gostaria de se entregar imersa, por inteiro, à terra escura dos rincões. Plantar-se ao solo, como as sementes adormecidas, aguardando o momento certo de nascer. Pensa que, talvez, seria bom renascer em outro hemisfério, outro continente, mas sabe que a essência nunca iria embora! Seria como uma só história, percorrendo diferentes caminhos. Seria como as águas doces, serpeando entre vales e escarpas, até por fim, entregarem-se vencidas ao mar.
É inútil apagar o rascunho, pois de alguma forma a pintura final seria o resultado de todos os esboços…
Lembra-se, que é quase agosto, o calor intenso lá fora faz um tempo reluzente. Mas dentro do peito parece haver um inverno sem fim.
As mãos ainda hesitam, mesmo diante da abstração. Há muitas imagens e palavras em redemoinho em sua cabeça. Não tem certeza se deveria escrever ou desenhar…
As mechas onduladas dos cabelos caem sobre a face, desliza sobre os olhos e boca. Então, percebe a poeira levantando do terreiro batido, açoitada pelo vento. Imagina ser dona do vento, do céu e do mar; das montanhas e da florada dos ipês. Ser dona de todas as cores do arco-íris, da maciez do solo e do calor do sol! Mas, também é dela o veneno que a embriaga, que embarga a voz e turva os pensamentos…
Quer tudo de uma só vez, pois sabe que pode redesenhar seus caminhos. Ademais, entendeu que seu mundo tem as cores e o tamanho que cabem dentro de si, e que suas mãos forem capazes de alcançar!
Evani Rocha
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Evani Rocha, natural de Chapada dos Guimarães (MT) é bióloga e professora da rede pública há 25 anos, com pós-graduação em Educação, especializada em Literatura Brasileira. Na área literária é poetisa, escritora e autora dos livros: Retalhinhos (Poesia, 2020) e Folhas de Outono (Contos, lançado na Bienal/Rio 2023). Na área acadêmica, é Acadêmica Internacional da FEBACLA – Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes, da qual recebeu o título Embaixadora Cultural da Paz. Apaixonada pelas artes, em especial a pintura e a escrita, Evani Identifica-se como uma pessoa ligada umbilicalmente à natureza, onde passou boa parte de sua infância. As artes e a natureza são sua fonte de inspiração, motivo pelo qual sua pintura e escrita têm uma voz que ecoa, quase sempre, desse lugar-comum.


Evani, você manuseia as palavras e ideias como uma sensível jardineira manuseia as flores do jardim, levando um ar de encantamento aos leitores!
Caro Sérgio, gratidão por suas palavras, é sempre um incentivo quando temos nosso texto comentado.
Obrigada!