Elaine dos Santos: ‘Reflexões sobre o mês de agosto’


Dizem (ah, como as pessoas dizem!) que sou muito cética em relação ao conhecimento popular (ah, se elas soubessem o que eu sei!). Estamos em pleno mês de agosto, mês do desgosto, segundo enuncia a sabedoria popular.
O filósofo grego Aristóteles , contrapondo-se ao seu preceptor, Platão, enunciou a mimese, isto é, a representação das coisas feitas pelo artista. Para Platão, o artista fazia uma representação de segunda ordem. As coisas existiam no mundo das ideias e o marceneiro ou o carpinteiro representavam-nas como objetos físicos.
Há um romance de Rubem Fonseca, chamado ‘Agosto‘ e que enfoca os acontecimentos de agosto de 1954, que desembocaram na morte do ex-presidente Getúlio Vargas, que me parece exemplar quando abordamos a mimese e, ao mesmo tempo, a fatídica fama do mês de agosto.
Como se trata de ficção que tem a História como pano de fundo, não existe o propósito de contar A verdade dos fatos, mas uma possível verdade, dentre tantas que, talvez, com o decorrer dos anos, ainda possam vir à tona. Sim, e daí?
O leitor do romance ‘Agosto’, de Rubem Fonseca, pode ler os eventos ficcionalizados ‘a gosto’. Lembrei-me disso porque vivemos uma época em que as pessoas leem o cotidiano acreditando que existe apenas uma e absoluta verdade, como se determinados políticos, religiosos detivessem a ‘fórmula secreta da verdade’.
A propósito: que verdade?
Segundo a tradição, a desventura do mês de agosto teria começado na Península Ibérica quando navegantes partiam em suas caravelas para longas viagens. Era o tempo das grandes navegações. Na praia, ficavam mães, namoradas, esposas, filhas que pranteavam o destino dos homens da família… Era sempre uma incerteza sobre o retorno.
No entanto, o século XX (20) foi pródigo em reforçar a má fama do mês de agosto (ou teria sido mero acaso?): a Primeira Guerra Mundial teve início em agosto (na verdade, a data oficial é 28 de julho de 1914, mas a responsabilidade recaiu sobre agosto); a Segunda Guerra Mundial teria encerrado com um armistício assinado em 14 de agosto de 1945; por outro lado, é impossível não registrar o horror das duas bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, em 6 de agosto e 9 de agosto de 1945, respectivamente.
No Brasil, além da morte de Getúlio Vargas, em 1954, é possível registrar a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, o que criou um clima de grande instabilidade política, visto que o seu vice-presidente, João Goulart, não era bem-visto pelos militares, que temiam a sua posse. Para apaziguar os ânimos, o Brasil viveu a experiência parlamentarista, quando Tancredo Neves assumiu como primeiro-ministro.
Cabe lembrar ainda o estranho acidente que vitimou Juscelino Kubitschek de Oliveira (JK), ex-presidente, em 22 de agosto de 1976. Diversas teses envolvem o acidente, como sabotagem mecânica, envenenamento do motorista etc. De qualquer sorte, JK também morreu em agosto.
Consagrado por retratar a violência urbana, Rubem Fonseca, no livro ‘Agosto’, proporciona-nos essa possibilidade de “’er o mundo’ justamente sob a ótica literária, da mimese, da imitação.
O historiador francês Paul Veyne ensina-nos que quem se dedica à escrita da História oficial não consegue recuperá-la em sua plenitude, vale-se de documentos, depoimentos etc., mas ressalta que, por exemplo, a batalha perdida por Napoleão em Waterloo tem várias nuances: a derrota sob a ótica de Napoleão, sob a ótica dos seus soldados, sob o olhar dos soldados vencedores, por exemplo, não é A História única e definitiva.
Tanto no acidente de JK, que teve o seu mandato como presidente questionado por atos de corrupção; como Vargas que poderia ter sido levado ao suicídio quando as acusações de Carlos Lacerda – corrupção e, na sequência, o crime da rua Tonelero, que teria sido encomendado para matar Lacerda – aproximavam-se aceleradamente do Palácio do Catete, poderiam ter tomado atitudes que fogem à compreensão do historiador e, portanto, dos registros históricos.
Rubem Fonseca, cujo romance foi publicado em 1990, abranda esse sentimento de totalidade – tão caro ao mundo grego antigo – para dar-nos a fluidez do mundo de Baumann, os grandes heróis que a História construiu e ofertou-nos eram ou são seres de carne e osso, dotados de músculos, nervos, vísceras, sangue, ideias que nem sempre se assemelham ao que pensamos, almejamos. Sendo assim, nós necessitamos dar-nos conta que a vida é uma sucessão de fatos inevitáveis, uma sucessão de narrativas.
Erich Auerbach, em seu livro ‘Mimesis‘, por exemplo, é pontual: você pode ler as grandes epopeias gregas – Ilíada e Odisseia – como elas são, ou seja, narrativas fictícias, atribuídas a um poeta, Homero, que não se sabe se existiu.
Por outro lado, ao ler a Bíblia cristã, você necessita assumir uma postura de crer ou não no Deus cristão – e isso não é menosprezo pelo Deus cristão, mas ter a ciência que, no mundo, existem outras religiões, outros deuses, outras crenças.
Por que mesmo que, passados 500 anos, continuamos associando agosto e desgosto?
Elaine dos Santos
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Natural de Restinga Seca (RS), é licenciada em Letras, Mestre e Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Tem formação em espanhol pela Universidad de La Republica, Montevidéu. Possui 29 artigos acadêmicos publicados em revistas nacionais na área de Letras com classificação Qualis, além de participação em eventos com trabalhos completos e resumos. É autora do livro Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe, adaptação de sua tese de doutorado, e coautora em outros livros versando sobre Direito, História, Educação e Letras. É revisora de textos acadêmicos, cronista com textos publicados em jornais regionais e estaduais e participação em mais de 80 antologias.


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