Ella Dominici: ‘Raízes das linhas e sementes do riso’


Aqui, colhemos as raízes que um dia plantamos em manhãs de alegria. Da sacada, o mar se abriu em primeira visão, e nas areias tristonhas se espalhou o silêncio de lembranças dispersas. Dentro da casa, a velha contava histórias ao ocaso, e ele, distraído, ouvia como quem encontra, por acaso, o fio secreto da vida.
A insegurança rondava, cambaleante, na dança incerta dos dias: duas auroras, uma rosa e outra roxa, se erguiam como promessa. No bolso, um pente; na boca, um dente. Pequenos símbolos da permanência, guardados e amarrados num lenço para não se perderem, como pensamentos fixos que insistem em seguir viagem.
Às costas, a crista dos rochedos se erguia, altas escarpas que outrora foram tórridas. Amigos, cúmplices da vida, conspiravam com as esquinas, enquanto, nos portais do tempo, a ferrugem das maçanetas revelava segredos do interior — segredos que fugiam ao toque dos dedos.
As palavras balbuciavam sentidos, como raízes que rastejam sobre seixos na beira d’água. Desde então, aprendi: as sementes são sempre mais alegres do que as raízes que permanecem presas aos séculos. Porque as raízes, mesmo que avancem por escadas de mármore, jamais alcançam as nuvens de Carrara que se infiltram pelos tetos fendidos.
Já as sementes, livres, voejam. Vão nas asas do amor, nos bicos de beijos, nas copas de árvores e ninhos ardentes, até o templo dos sentidos. O pólen, em sua dança, dispersa cócegas pela pele, desfazendo a arrogância e desnudando o ego cego.
E na elegância do riso, aquele riso que chega até às lágrimas, fragrâncias se libertam, dissolvem mistérios sérios e devolvem à vida seu brilho de instante. Passionais, as sementes cavalgam no dorso de rosas desvairadas; na pressa da alegria, perdem as sandálias, e até mancando correm — mas correm sempre, leves, no movimento que as conduz para além do peso das raízes.
Porque a vida, afinal, é bem mais alegre do que triste: é feita de sementes que se recusam a permanecer presas, e escolhem sempre dançar no vento.
Ella Dominici
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Natural de São Paulo (SP), é endodontista por profissão e formada no curso superior de Língua e literatura francesa. Uma profissional que optou por uma ciência da área da saúde, mas que desde a infância se mostrava questionadora e talentosa na Arte da Escrita, suscitando da parte de um mestre visionário a afirmação de ela ser uma escritora nata, que deveria valorizar o dom que recebera. Atendendo ao conselho recebido, na maturidade Ella cumpre o vaticínio e lança o primeiro livro solo de poemas (Mar Germinal), rompendo com a escrita meramente contemplativa, abraçando fragmentos, incertezas e dualidades para escancarar oportunidades a si como ao outro. Dribla o autoritário tempo, flagra mazelas psicológicas em minúsculas e múltiplas impressões exteriores e internas. É membro da AMCL – Academia Mundial de Cultura e Acadêmica Internacional da FEBACLA. Coautora de várias antologias. Publica na Revista Internacional The Bard e se inscreveu no 8º Festival de Poetas de Lisboa, participando da antologia promovida pelo evento


Ella, este texto tem uma leveza e um lirismo que é um afago na alma! Eu adoraria tê-lo escrito! Confesso mesmo que, terminando a leitura, concluo que ainda tenho muito chão para percorrer, despertar de talento e chuva de inspiração para redigir um texto da mesma altura literária.
Destaco três excertos:
“Dentro da casa, a velha contava histórias ao ocaso, e ele, distraído, ouvia como quem encontra, por acaso, o fio secreto da vida”.
“Já as sementes, livres, voejam. Vão nas asas do amor, nos bicos de beijos, nas copas de árvores e ninhos ardentes, até o templo dos sentidos.”
Porque a vida, afinal, é bem mais alegre do que triste: é feita de sementes que se recusam a permanecer presas, e escolhem sempre dançar no vento.