Ranielton Colle: ‘A MUSA’
Depois de termos feito um pacto de amor, de andarmos juntos por anos e mais anos, ela finalmente foi embora. E eu não sabia mais o que fazer. A musa me abandonara no vazio da criatividade morta. E eu não conseguia escrever mais nem mesmo um mísero poema. E os romances? E os contos? Eles simplesmente desapareceram de minha imaginação como se eu nunca tivesse conseguido criar nada, nem mesmo em sonhos…
Tentei rituais religiosos sagrados, e mesmo satânicos, para invocá-la de volta para mim. Mas toda a vez que eu conseguia vislumbrar sua imagem, ela era apenas um vulto distante que se afastava ainda mais. E a sua voz? Sua voz doce e sensual sussurrava em meu ouvido: “Ah querido, nosso tempo acabou. Você não soube… não cultivou o nosso amor… procure outra.” E eu entrei em verdadeiro desespero porque não sabia fazer mais nada na vida. Eu havia me acostumado, me viciado, a me aproveitar dela e usar da doce inspiração que ela me dava; tinha então quarenta anos de idade… muito velho para iniciar qualquer carreira no mercado de trabalho, e muito novo para não fazer mais nada da vida…
Já vislumbrava minha morte, esquecido em algum banco de praça, ébrio com a cachaça comprada com os trocados conseguidos as custas da piedade alheia.
Então, em desespero, eu sentava à frente do computador e travava uma batalha silenciosa com o editor de texto… dois, três parágrafos, uma folha e, de repente, eu não sabia como continuar e apagava tudo. Era impossível. Sem ela, sem Calíope, meus dias estavam contados. E meu futuro era miserável, solitário e triste.
Foi quando eu tive a ideia: eu a invocaria, imploraria para que ela viesse. E quando ela chegasse, eu a aprisionaria. Era triste ter que fazer isso, seria muito melhor se ela estivesse comigo por vontade própria. Mas ela era imortal… E o que eram alguns míseros anos de prisão para ela, era para mim o alívio, e a minha vida de volta: O pagamento garantido das contas, festas, amigos e um futuro…
– Por favor moço, me solta
– Não posso… mas não se preocupe, logo ela a possuir,á e você não sentirá nada
– Por favor, moço, eu quero minha mãe…
O ritual precisava de uma adolescente, ou uma criança, para que ela entrasse em seu corpo e eu pudesse aprisioná-la lá… não era fácil. Mas era preciso. Quando a noite caiu, a garota estava amarrada na cadeira, no centro do círculo que eu havia desenhado no chão com o meu próprio sangue. Os pulsos dela já estavam cortados esvaiam seu sangue em um balde. E eu já tinha invocado Calíope… Era só uma questão de tempo. As tentativas anteriores haviam fracassado, a menina morria sempre antes de Calíope possuí-la… mas desta vez eu estava com fé de que daria certo. Havia sido mais cuidadoso na preparação de tudo, e nos detalhes.
Quando ela apareceu, olhou para mim com a tristeza de uma mãe que olha para um filho que estava condenado:
– Por que você fez isso? Será que você não entende? Elas eram só crianças, adolescentes…
– Você me abandonou! A culpa é sua! Eu estava desesperado!
– Tu és tão egoísta que não consegues entender não é? Tu não és o único ser vivo com sentimentos no mundo… – saiam lágrimas de seus olhos enquanto ela me dizia essas palavras. Porém eu estava feliz porque ela teria que me inspirar novamente. Ela não tinha escolha.
– A morte dessas garotas não foi em vão. Com a inspiração que você me der poderei escrever textos edificantes para a humanidade inteira.
– Seu porco hipócrita! O mundo está cheio de falsos profetas, e você só quer ser mais um! Você me dá nojo!
– Eu não me importo com seu nojo – eu disse tentando me convencer disso – eu tenho ai, no máximo mais uns sessenta anos de vida se eu chegar aos cem. Isso para você não é nada. Mas para mim é uma vida inteira… De qualquer forma, duvido que você queira passar esse tempo todo presa nesse corpo e acorrentada em um porão. Está disposta a fazer um acordo comigo?
– Nunca! – ela gritou e cuspiu na minha cara.
Foi uma semana… no começo eu ainda sofria um pouco por causa das meninas. Mas a cada dia que passava eu estava mais convencido de que elas haviam sido sacrificadas em prol de um bem maior. Eu precisava que Calíope assinasse o acordo! Uma vez feito isso ela não poderia, pela tradição, voltar atrás. E eu teria novamente a minha imaginação, que havia conquistado leitores de todo o mundo.
Um mês depois, ela finalmente cedeu:
– Tudo bem – ela disse – Traga um papel e uma caneta tinteiro.
Eu os levei. Ela escreveu que eu teria inspiração para escrever por todos os dias de minha vida até os cem anos de idade. Que eu não poderia ser assassinado antes, que minha morte antes só poderia acontecer por um acidente ou de causa naturais. Escreveu também que nunca me faltaria ideias, que meus textos seriam reconhecidos. E que tudo isso teria início imediato logo após ela ser libertada daquele corpo. Eu li o contrato, era tudo o que eu queria, fiquei radiante. E concordei com o mesmo. Então fiz um pequeno corte em seu dedo, ela molhou a caneta no sangue, e assinou. Logo em seguida limpei o chão apagando o círculo e pronunciei as palavras que a libertariam. A menina voltou a si e começou a chorar. A libertei e abandonei o galpão que havia alugado.
– Você está dizendo que matou garotas em um ritual satânico é isso?
– Não! Você não prestou atenção na história? Eu sequestrei e matei nove, mas porque estava tentando invocar e aprisionar Calíope! Na décima deu certo! Não é um ritual satânico…
– Está certo. Você tem alguma foto dessas mocinhas?
– Não, mas você pode procurar nas pessoas desaparecidas… se você quiser eu levo você até os corpos!
– Tudo bem, tudo bem… Mas me responde uma coisa: Se tudo deu certo, você conseguiu o que queria, porque você está se entregando?
– Policial… está vendo estas caixas cheias de encadernações? Tudo isso eu escrevi em menos de um mês. Eu estou enlouquecendo! Não consigo parar de escrever. E cada vez que eu escrevo, eu escrevo a história dessas menininhas! Na visão delas, na de seu pai, na de sua mãe, na de seus irmãos, na de suas amigas… de cada uma delas! É um inferno porque toda vez eu escrevo, eu sinto o sofrimento deles! E eu não consigo parar nem mesmo para dormir direito! Se eu fico mais de quatro horas sem escrever minha cabeça começa a doer de tanta coisa que passa por ela. É uma tortura… Eu já tentei me matar de várias formas, mas eu simplesmente não morro. O contrato dizia até os cem anos de idade… eu não suporto mais isso. Pena de morte, eu quero a pena de morte! Elas não mereciam o que eu fiz. Seus pais não mereciam, seus irmãos, suas amigas não mereciam… eu sou um monstro. Eu preciso morrer. Você precisa me prender, por favor, por favor, por favor eu imploro
O policial olhou para aquelas enormes caixas cheias de encadernações e não sabia dizer se estava diante de um louco inofensivo ou de um perigoso assassino. Ele se identificava como Sr. X, um famoso autor de Best-sellers. A identidade conferia e o rosto também. Então o policial ficou com pena dele. Ele estava deplorável. E enquanto ele olhava aquelas caixas e tinha aqueles pensamentos, o homem a sua frente escrevia freneticamente em um bloco com uma caneta…
Ele foi conduzido a uma cela temporária enquanto o departamento de polícia investigava sua história maluca. No entanto, nenhum corpo foi encontrado onde ele disse que estariam.
Uma adolescente, no entanto, realmente havia desaparecido por um mês e reportado que fora sequestrada há algum tempo. Esta, quando chamada, o identificou. Todavia não havia nenhuma marca de violência nela. Nenhuma cicatriz ou corte em seu pulso como ele havia descrito. Ele certamente ficaria preso por um bom tempo. Mas não pegaria pena de morte como desejava.
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É fundador e um dos editores do Jornal Cultural ROL e do Internet Jornal. Foi presidente do IHGGI – Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Itapetininga por três anos. fundou o MIS – Museu da Imagem e do Som de Itapetininga, do qual é seu secretário até hoje, do INICS – Instituto Nossa Itapetininga Cidade Sustentável e do Instituto Julio Prestes. Atualmente é conselheiro da AIL – Academia Itapetiningana de Letras.