Cassia Eller, a diva que nos deixou precocemente aos 39 anos e até hoje é lembrada pela irreverência, timidez, sinceridade e simplicidade com que tratava todas as pessoas que dela se aproximavam
“Quando o segundo sol chegar…”
“Eu só peço a Deus, um pouco de malandragem…”
“Estranho é gostar tanto do seu All Star azul…”
Pois então, ao ler as frases acima, já lemos cantando, não é mesmo? E todo mundo sabe quem as cantou. São hits que podemos escutar em mercados, padarias, não só em rádios ou TVs. E sempre com aquela voz rouca, potente e inconfundível. Claro, estamos falando de Cássia Eller. A diva que nos deixou precocemente aos 39 anos e até hoje é lembrada pela irreverência, timidez, sinceridade e simplicidade que tratava todas as pessoas que dela se aproximavam.
Porém, hoje não é dia de falarmos da Cássia. Muito menos daquilo que todo mundo conhece dela. Hoje é dia de conversarmos com quem viu toda uma trajetória, do início ao fim. Trocou fraldas, deu remédio, curou gripes e resfriados e sofreu com um final brutal e inesperado.
Hoje daremos voz à mãe, a quem sempre esteve presente. Momentos bons ou ruins, pouco importa.
Então que tal um bate-papo com Nanci Ribeiro? A mãe da nossa eterna Diva, Cássia Eller!
Eliéser Lucena
Nanci, hoje muitas pessoas analisam a trajetória da Cássia como algo que tinha que acontecer ou que talvez nem tenha sido tão complicado assim. Não participar do dia-a-dia pode trazer a falsa impressão de tranquilidade em torno de uma carreira que não é nem nunca será fácil. Como foi que isso começou?
Nanci Ribeiro
Nunca foi simples. Foi fruto de muita dedicação, de um esforço diário no sentido de aprender. Cássia sempre fez e aprendeu tudo sozinha. Existe um momento na vida do artista em que nada funciona, nada dá certo e Cássia passou por isso também. Tocou em bares por pouco mais que nada, em trio elétrico, carnaval, forró e onde abriam uma fresta, ela entrava. Assim começou a se destacar aqui em Brasília, naquela fase pós-adolescência. Mas deu certo. Nunca foi nem nunca será fácil. Mas quem tem certeza do que quer e luta com todas as forças, sempre vence.
Eliéser Lucena
Nos anos 60, aos 4 anos, Cássia teve febre reumática, algo que a deixou com sequelas importantes, uma delas cardíaca (qualquer pesquisa no google mostra o que é e as sequelas possíveis da doença). Como foi lidar com isso tão cedo?
Nanci Ribeiro
Bom, morávamos em Santarém e tivemos o diagnóstico de febre reumática. Foi devastador ouvir o médico dizer que ela não passaria dos 20 anos pois tinha sequelas cardíacas. Então foram anos de tratamentos, sofrimentos, injeções doloridas e muita incerteza. Ela ouviu, não do médico, mas de um colega que estava no hospital, no mesmo ambiente. Então foi mais sofrido. Como explicar para uma criança o que era aquilo?
Eliéser Lucena
Foram muitas mudanças e andanças, normais para famílias de militares, ainda mais nos anos que se passaram (60, 70 e 80), vindo parar em Brasília. Nos conte um pouco mais sobre o trajeto até aqui. Como Cássia se identificava com a cidade?
Nanci Ribeiro
Bem, começamos como família no Rio de Janeiro, mudamos para Belo Horizonte, Rio de novo e Santarém. Porém o clima aqui em Brasília era melhor para se lidar com a febre reumática e para cá viemos. Cássia sempre fez amizade fácil e sempre se adaptou aos lugares com extrema facilidade. Nunca foi um problema lidar com pessoas.
Eliéser Lucena
Como foi a adolescente Cássia? Deu trabalho? Era popular entre os colegas de escola? Do bairro?
Nanci Ribeiro
Olha, dizer que foi padrão seria um exagero enorme. Mas a Cássia nunca foi de dar trabalho, de termos que ir atrás ou adotarmos castigos. Sempre foi uma pessoa doce, responsável, preocupada com o bem-estar de todos que a cercavam. Jogava bola na rua, soltava pipa, organizava jogos com as crianças e dava as medalhas do pai (era atleta do Exército) como prêmio. Enfim, sempre foi desapegada de tudo. As coisas nunca tiveram valor monetário para ela.
Eliéser Lucena
No início é claro que todo mundo tem preocupações com os estudos dos filhos, faculdade, profissão e, óbvio, como será que eles vão se sair profissionalmente, como vão lidar com a sequência de uma vida adulta. Como era com a Cássia? Ela tinha essa visão de que talvez precisasse de um emprego, digamos, normal?
Nanci Ribeiro
Cássia tentou ser professora de séries iniciais, fazendo o curso da Escola Normal de Brasília. Tinha como dar certo? Ahahahahahaha! Claro que não. Trabalhou um dia em uma repartição pública e em todos os empregos que tentou, foi mandada embora por não se enquadrar nos padrões. Não necessariamente rebeldia. Vou te dar um exemplo: já adolescente, algumas tias e primas queriam sair e deixar a Cássia tomando conta das crianças. Eu disse que era melhor deixar as crianças tomando conta da Cássia. Ela era assim, uma criança num corpo adolescente e depois adulto.
Eliéser Lucena
Um belo dia a gente percebe que aquela pessoa que criamos já não nos pertence mais, que já está em condições de partir e fazer a sua própria trajetória. Quando foi o momento em que você como mãe entendeu que ela era uma artista e não havia volta? Ela seria uma estrela.
Nanci Ribeiro
Bom, nós viemos de uma família com muitos talentos. Minha mãe era cantora e instrumentista, eu cantei na noite por algum tempo (cheguei a gravar uma música com a Cássia) e a gente sentia que com a ela seria diferente. Mas quando ela foi aprovada no Veja Você Brasília (musical de Oswaldo Montenegro) e começou a fazer as turnês, a gente já podia entender que talvez houvesse uma possibilidade. Claro que antes do musical ela já demonstrava talento. Desde os primeiros anos de vida. Mas ali foi meio que uma confirmação de que algo maior poderia acontecer. Já eram pessoas do meio, acostumadas com espetáculos grandes. Eles que falavam. Então nos cabia acreditar e torcer.
Eliéser Lucena
Todo mundo pensa que a Cássia sucumbiu ao mundo das drogas, o que sabemos que não é verdade. Então, o que foi?
Nanci Ribeiro
Cássia tinha a questão cardíaca desde os quatro anos. Eu não teria aqui nenhum motivo para negar a questão das drogas. Ela mesma falava abertamente. Porém ao nos deixar, já se passavam três anos sem o uso de nada. Ela fez um tratamento sério quando percebeu que estava perdendo demais o controle e assim foi. É óbvio que drogas, cardiopatia, vida noturna, naquele ano o excesso de shows e o cansaço contribuíram. A gente sempre quer que tenha solução e não se conforma muito. Mas sabemos que temos o tempo contado aqui e que todos vamos. Ela sempre disse que morreria antes de mim. Foi o que aconteceu.
Eliéser Lucena
Cássia abriu várias mentes, desbravou valores e lançou tendências. Em uma decisão inédita, a justiça brasileira concedeu a guarda de uma criança para a companheira de alguém que partiu. Como foi ver algo assim vindo daquela garotinha criada por você?
Nanci Ribeiro
Nós sabíamos que aquela confusão não tinha sentido e que a vontade da Cássia era que o Chicão ficasse com a Eugênia. Então não tivemos dúvidas de que essa seria a melhor solução e foi o que aconteceu. Era algo inédito, mas na nossa visão, como família, era natural isso acontecer. Ele deveria ficar com quem identificava, também, como mãe. Assim foi.
Eliéser Lucena
Hoje, existe um espetáculo na praça chamado Cássia Rejane – Muito Mais que Eller que conta a trajetória da filha que se tornaria artista (uma das maiores). A família está presente dando todos as diretrizes de como foi o processo. Foi complicado relembrar ou revelar histórias e sentimentos tão particulares e especiais?
Nanci Ribeiro
Esse espetáculo nasceu da nossa necessidade em contarmos como Cássia era de verdade. Não a artista. Isso com qualquer pesquisa na internet se consegue. Mas a Cássia aqui de casa, a que nós vimos crescer, se transformar em uma artista espetacular e, infelizmente, partir. Então fizemos um apanhado de histórias nas nossas mentes. Foi montado um espetáculo que conta essa trajetória de 1962, quando ela nasceu, até 1989, quando estoura com “Por enquanto”, do Renato. Não estamos dizendo com isso que ela não era aquela Cássia que as pessoas estão mais acostumadas. Queremos contar que ela era mais do que isso. Então “Muito Mais que Eller”
Eliéser Lucena
O que há de verdade em Cássia Rejane – Muito Mais que Eller que o diferencia dos demais espetáculos, livros, documentários e todas as reportagens feitas sobre ela?
Nanci Ribeiro
Ali estão histórias verdadeiras que mostram a essência da Cássia, coisas que nós vimos e temos consciência que são reais, autênticas. Coisas como as bolachas Maria que é uma passagem de quando as gêmeas (Carla e Cláudia) nasceram. Ela morria de ciúmes. Então quando não tinha nenhum adulto por perto, ela enchia a boca de bolacha, fazia uma gosma com aquilo e dava para as gêmeas. Aplicava injeções nelas com agulha de crochê. Coisas assim, que só a Cássia faria. Ahahahahahahahahahahaha!
Eliéser Lucena
Uma vez ouvi de você que Cássia era uma criança em um corpo adulto e, por vezes chegava a casa com frio, fome ou sem dinheiro algum por não ter apego a nada material. Era assim mesmo? Conte uma história que ilustra isso, que demonstre como Cássia pensava.
Nanci Ribeiro
Isso era verdade. Vou te contar uma coisa que nos aconteceu no Rio de Janeiro. Ela já era a Cássia Eller. Estávamos de carro num calor insuportável do verão carioca. Ela foi reconhecida por uma pessoa em situação de rua que se aproximou, disse que ela era a Cássia Eller e que deveria ter algum dinheiro. Ele estava com fome. Ela prontamente pegou umas notas da bolsa, que nem contou e deu para a pessoa. Eu disse: mas Cássia, você não reparou que ele é forte, cheio de saúde e consegue trabalhar? Mesmo que seja por um almoço? Ela respondeu: “mãe, ele é grande, forte, pode trabalhar e tudo mais. Mas hoje, agora, ele sente tanta fome como eu e a senhora…”. Sem dúvida uma lição que levo até hoje. Ela sempre viu o ser humano acima de qualquer coisa.
Eliéser Lucena
Nanci, se hoje você encontrasse com a Cássia para só mais um bate-papo, o que diria para ela?
Nanci Ribeiro
Eu não sei se teria alguma coisa a dizer ou pedir. Só gostaria de abraçá-la novamente e mostrar o quanto é especial e o quanto faz falta. Tenho outros quatro filhos e todos eles são especiais da sua forma, cada um tem o seu jeito. Mas faltar um é algo doloroso demais. Então eu acredito que simplesmente a colocaria no meu colo, como fiz várias vezes e ficaria ali, olhando em uma comunicação de olhares e gestos.
Eliéser Lucena
Bom, quero agradecer a paciência de, mais uma vez, responder a respeito de uma artista que até hoje aguça a curiosidade das pessoas e fazer uma última pergunta: quem era Cássia Eller? A de verdade, dentro de casa, a que foi criada por você e o Altair, junto com a Cláudia, a Carla, a Rúbia e o Ronaldo?
Nanci Ribeiro
Também quero agradecer o espaço dado para falarmos da minha filha e eu poder contar um pouquinho de como ela era, independentemente de ser a Cássia Eller. O Brasil perdeu uma cantora, uma diva, uma referência, como já ouvi várias vezes. Eu perdi a minha filha. Uma dor que não se explica e que nenhuma mãe deveria sentir.
Ela foi uma pessoa extremamente preocupada com os outros, com o bem-estar das pessoas. E não só das que a cercavam. Nunca se apegou a nada material e fazia as coisas do jeito dela. A nossa visão, de vez em quando fica turva, quando se trata dos nossos e não entendemos algumas atitudes, algumas escolhas.
Depois de tudo, muito do que vi e vivi com ela e meus outros filhos, faz sentido. Deus me mandou um presente, alguém muito especial (só perguntar aos que conviveram com ela) e na hora combinada, a levou de volta. A Sássia, como os irmãos chamavam quando mais novos, pode ser vista no espetáculo que estamos à duras penas, colocando no mercado – Cássia Rejane – Muito Mais que Ell.
O SEGUNDO SOL – CÁSSIA ELLER
Eliéser Lucena
CONTATOS COM O ENTREVISTADOR
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Eliéser Affonso Lucena é natural da cidade de Cruz Alta/RS e radicado em Brasília/DF. Na área profissional é Gestor de Projetos, CEO da Matriz Cultural – Escritório de Gestão de Projetos Culturais. Na área educacional, professor com quatro licenciaturas (Pedagogia, Música, Educação Física e História). Na área literocultural, mais conhecido como Eliéser Lucena, é músico, compositor, poeta, escritor e jornalista. Fundador da banda autoral Trupe Lendas e Canções. Concebeu, escreveu, dirige e toca em espetáculos como Seis Faces – A Trilha dos Sentimentos, A Bola Azul, Arte Louca e Arrancada, Caminhos – Viajantes de Nós e, atualmente, o musical Cássia Rejane – Muito mais que Eller. É Acadêmico Internacional da FEBACLA – Federação Brasileira dos Acadêmicos das ciências Letras e Artes, tendo recebido desta entidade o título de Doutor Honoris Causa em Belas Artes e Música..
É sempre bom saber um pouco mais do além do palco na vida do(a) artista que admiramos. Sabê-lo(a), também, um ser generoso, humano e desprendido da ganância, faz com que tenhamos mais admiração por ele(a) e seu legado à cultura, à arte, enfim, à vida. Obrigada pela entrevista.