Ivete Rosa de Souza: Crônica ‘Pés descalços’
Em minhas mais doces memórias, ainda me vejo correndo descalça. Brincava na rua até à noite, com meus irmãos, sem preocupações, sem que meus pais temessem algum perigo, só adentrava a casa somente quando minha mãe chamava, mas meus pais não saiam à rua para nos impedir de ser crianças.
Muitas vezes descuidada na empolgação da correria, feri meus pés em espinhos, pequenos cacos de vidro. Simplesmente sentava-me no chão, retirava o espinho e saia a correr, sem sentir dor.
Ainda tenho algumas cicatrizes dos cortes em cacos de vidro. E me recordo dos sustos de minha mãe, quando era necessário ir ao pronto socorro, tirar um pedaço de vidro que teimosamente incrustrado, não querendo sair. Doía, mas me segurava, afinal a dor passaria, enquanto fazia esforço para não chorar, minha mãe se apiedava, e eu não levaria umas chineladas.
No dia seguinte, lá estava eu novamente, abandonando os chinelos ou tênis, largados na calçada. A liberdade de ter os pés libertos, sentindo a grama, a terra até mesmo o asfalto quente. Tudo valia a pena, o riso, as brincadeiras, a correria, eram recompensados com o esquecimento desses pequenos acidentes.
Depois de crescida, tomei modos como diria minha mãe, e só andava descalça na areia, quando ia à praia, sentido as ondas molhando os pés sedentos de liberdade. Adorava ver as águas imensas apagando minhas pegadas.
Adulta, calcei meus filhos, preocupando-me que pudessem ferir seus pés. Chinelos, sapatos, tênis, tudo para proteger meus rebentos.
Já não tinham a liberdade ilimitada de outros tempos; brincar na rua, só com a supervisão dos pais. Ficar na rua até tarde noite adentro, nem pensar! Nesses novos dias, com a insegurança instaurada em todos os lugares, não tinha jeito.
Infelizmente os tempos mudaram, a inocência da infância, dos que têm mais de 50 anos, ficou no passado.
Atualmente, pés descalços são sinônimos de pobreza, são marcas dos desprovidos, dos indigentes, ou dos inocentes que ainda tentam dar os primeiros passos. Não é mais legado de liberdade da infância , de banhos de chuva, corridas na enxurrada, uma liberdade descontraída e privilegiada.
Agora tenho sapatos demais, que me levam a tantos lugares, mas eles nunca me levarão aonde fui quando tinha os meus pés descalços…
Ivete Rosa de Souza
Contatos com a autora
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Natural de Santo André (SP) e ex-policial militar, é uma devoradora de livros. Por ser leitora voraz, para ela, escrever é um ato natural, tendo desenvolvido o hábito da escrita desde menina, uma vez que a família a incentivava e os livros eram o seu presente preferido. Leu, praticamente, todos os autores clássicos brasileiros. Na escola, incentivada por professores, participou de vários concursos, sendo premiada – com todos os volumes de Enciclopédia Barsa – por poesias sobre a Independência do Brasil e a Apollo 11. E chegou, inclusive, a participar de peças escolares ajudando na construção de textos. Na fase adulta, seus primeiros trabalhos foram participações em antologias de contos, pela Editora Constelação. Posteriormente, começou a escrever na plataforma online Sweek a qual promovia concursos de mini contos com temas variados, sendo que em alguns deles ficou entre os dez melhores selecionados, o que a levou à publicação do primeiro livro, Coração Adormecido (poesias), pela Editora Alarde (SP). Em 2022, lançou Ainda dá Tempo, o segundo livro de poesias, pela mesma editora.
Ivete, lendo a sua crônica, voltei a minha infância e brincamos juntos.
Naqueles tempos, o mundo nos oferecia essa liberdade, que hoje não oferece mais aos nossos filhos e netos. A infância, hoje, é uma infância virtual, impessoal, artificial.