Clayton Alexandre Zocarato
‘O silêncio do café e o último cortejo’


Naquela manhã, o cheiro de terra molhada se misturava ao perfume doce das flores do cafezal.
O sol ainda nem havia rompido por inteiro o nevoeiro quando o sino da igrejinha tocou três vezes, pausado, grave, anunciando o que todos já sabiam desde a madrugada: o nonno se fora.
Na casa grande, de paredes caiadas e janelas azuis, o silêncio se estendia como uma colcha pesada.
As mulheres da família — todas de luto antecipado — sussurravam em dialeto italiano, entre orações e prantos contidos.
A morte, naquele tempo, não era espetáculo; era trabalho.
E como todo trabalho no interior, pedia mãos firmes, gestos práticos e respeito profundo.
O corpo do velho Giuseppe foi lavado no tanque do quintal, com água tirada do poço, ainda fria.
Duas mulheres da comunidade, acostumadas a lidar com o “passamento”, vinham sempre ajudar nessas horas.
Uma delas preparava a bacia com folhas de manjericão e alecrim, “pra afastar os maus espíritos”, dizia.
A outra penteava o cabelo branco, alisando-o com um pano úmido, como se quisesse devolver ao rosto enrugado um pouco da dignidade dos tempos de lavoura.
Não havia velório em salão, nem caixão comprado às pressas na cidade. O filho mais velho, o tio Ângelo, cortara a madeira do próprio pai há anos, quando a saúde dele começara a fraquejar.
“Um homem deve estar preparado até pra sua partida”, dizia o nonno, rindo com os dentes manchados de fumo. O caixão fora guardado no paiol, coberto com um lençol e cheiro de milho.
Agora, era trazido para dentro, posto sobre duas cadeiras, enquanto se ajeitava o corpo com o mesmo cuidado que se tem ao preparar o pão antes do forno.
O velório durou a noite toda.
As lamparinas tremeluziam, e o café era passado sem descanso.
Ninguém chorava alto; havia um pudor na dor, um respeito que impedia o desespero.
As pessoas falavam baixo, lembrando histórias de colheitas fartas, de domingos de missa e das longas conversas na varanda.
De tempos em tempos, alguém fazia o sinal da cruz e murmurava: “Que Deus o receba na terra boa”.
As crianças, que não compreendiam bem a morte, espiavam curiosas o corpo imóvel e os gestos das mulheres.
A mãe, com voz firme, dizia: “Não se tem medo, se tem respeito.” E essa frase, dita tantas vezes naqueles dias, se gravava como lição de vida — e de morte.
O cortejo, no dia seguinte, saiu logo após o toque das seis.
O caixão foi colocado sobre a carroça, coberto por um pano branco e enfeitado com ramos de café e flores do quintal.
Não havia banda, nem padre acompanhando.
O padre ficaria à espera no cemitério, onde a terra já estava aberta.
Os homens tiravam o chapéu ao passar e as mulheres juntavam as mãos.
O som das rodas no chão de terra batida parecia um rosário, repetido no compasso das passadas lentas.
O caminho até o cemitério atravessava os cafezais, e o cheiro das folhas, misturado ao orvalho, dava àquela despedida um ar de colheita tardia.
Era como se a terra, que tanto recebera o suor do nonno, agora se preparasse para recebê-lo inteiro, como paga justa de uma vida de trabalho.
No cemitério, as cruzes de madeira se inclinavam ao vento. O padre, de batina gasta, disse as palavras breves, e cada familiar jogou um punhado de terra.
O som surdo dos torrões batendo no caixão parecia o fecho de um ciclo, o último eco de uma vida simples.
Depois, todos voltaram à casa. O café fumegava no fogão a lenha, e o cheiro de pão fresco preenchia o vazio.
Alguém comentou que o céu estava bonito, “cor de café com leite”.
E assim, entre um gole e outro, a vida foi retomando seu curso lento, como o rio que contorna as margens, sem nunca deixar de correr.
Nos dias seguintes, o canto dos galos voltou, os bois foram levados à lavoura, e a rotina retomou seu ritmo.
Mas, ao entardecer, quando o sol se escondia por trás dos cafezais, alguém sempre olhava para o horizonte e dizia baixinho: “Lá vai o nonno, cuidando das plantações do outro lado.”
A morte, ali, não era um fim brusco, mas uma continuidade muda — uma semente enterrada que renascia em memória, em cheiro de café torrado, em reza sussurrada.
E talvez fosse esse o segredo dos tempos antigos: entender que, na simplicidade do rito, havia mais do que despedida.
Havia o reconhecimento de que toda vida, como o café, precisa ser colhida no tempo certo — e devolvida à terra com gratidão.
Clayton Alexandre Zocarato
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Natural de São Paulo, Capital, possui Licenciatura em História pelo Centro Universitário Central Paulista – Unicep – São Carlos/SP e graduação em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano – Ceuclar – Campus de São José do Rio Preto/SP. Escreve regularmente para o site Recanto das Letras (www.recantodasletras.com.br) usando o pseudônimo ZACCAZ, mesclando poesia surrealista, com haikais e aldravias. É Comendador da Ordem Cultural Beethoven.


Clayton, um texto bem escrito, hipnótico, e que, ao final dele deixa um gosto de “quero ler mais”, é um finíssimo ‘prato’, com as melhores e mais saborosas ‘iguarias literárias’.
Há várias passagens que merecem transcrição. Porém, praticamente seria transcrever o conto integralmente. Por esta razão, transcrevo o final, fechado com Chave de Ouro:
“A morte, ali, não era um fim brusco, mas uma continuidade muda — uma semente enterrada que renascia em memória, em cheiro de café torrado, em reza sussurrada.
E talvez fosse esse o segredo dos tempos antigos: entender que, na simplicidade do rito, havia mais do que despedida.
Havia o reconhecimento de que toda vida, como o café, precisa ser colhida no tempo certo — e devolvida à terra com gratidão”.